quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

A ditadura do relógio

Não há nada que diferencie tanto a sociedade ocidental de nossos dias das sociedades mais antigas da Europa e do Oriente do que o conceito de tempo. Tanto para os antigos gregos e chineses quanto para os nômades árabes ou para o peão mexicano de hoje, o tempo é representado pelos processos cíclicos da natureza, pela sucessão dos dias e das noites, pela passagem das estações. Os nômades e os fazendeiros costumavam medir — e ainda hoje o fazem — seu dia do amanhecer até o crepúsculo e os anos em termos de tempo de plantar e de colher, das folhas que caem e do gelo derretendo nos lagos e rios. O homem do campo trabalhava em harmonia com os elementos, como um artesão, durante tanto tempo quanto julgasse necessário. O tempo era visto como um processo natural de mudança e os homens não se preocupavam em medi-lo com exatidão. Por essa razão, civilizações que eram altamente desenvolvidas sob outros aspectos dispunham de meios bastante primitivos para medir o tempo: a ampulheta cheia que escorria, o relógio de sol inútil num dia sombrio, a vela ou lâmpada onde o resto de óleo ou cera que permanecia sem queimar indicava as horas. Todos esses dispositivos forneciam medidas aproximadas de tempo e tornavam-se muitas vezes falhos pelas condições do clima ou pela inabilidade daqueles que os manipulavam.

Em nenhum lugar do mundo antigo ou da Idade Média, havia mais do que uma pequeníssima minoria de homens que se preocupassem realmente em medir o tempo em termos de exatidão matemática.

O homem ocidental civilizado, entretanto, vive num mundo que gira de acordo com os símbolos mecânicos e matemáticos das horas marcadas pelo relógio. E ele que vai determinar seus movimentos e dificultar suas ações. O relógio transformou o tempo, transformando-o de um processo natural em uma mercadoria que pode ser comprada, vendida e medida como um sabonete ou um punhado de passas de uvas. E, pelo simples fato de que, se não houvesse um meio para marcar as horas com exatidão, o capitalismo industrial nunca poderia ter se desenvolvido, nem teria continuado a explorar os trabalhadores, o relógio representa um elemento de ditadura mecânica na vida do homem moderno, mais poderoso do que qualquer outro explorador isolado ou do que qualquer outra máquina.

A princípio, esta nova atitude em relação ao tempo, este novo ritmo imposto à vida foi ordenado pelos patrões, senhores dos relógios, e os pobres o recebiam a contragosto. E o escravo da fábrica reagia, nas horas de folga, vivendo na caótica irregularidade que caracterizava os cortiços encharcados de gim dos bairros pobres no início da era industrial do século XIX.

Os homens se refugiavam no mundo sem hora marcada da bebida ou do culto metodista. Mas aos poucos, a ideia da regularidade espalhou-se, chegando aos operários. A religião e a moral do século XIX desempenharam seu papel, ajudando a proclamar que “perder tempo” era um pecado. A introdução dos relógios, fabricados em massa a partir de 1850, difundiu a preocupação com o tempo entre aqueles que antes se haviam limitado a reagir ao estímulo do despertador ou à sirene da fábrica. Na igreja e na escola, nos escritórios e nas fábricas, a pontualidade passou a ser considerada como a maior das virtudes.

E desta dependência servil ao tempo marcado nos relógios, que se espalhou insidiosamente por todas as classes sociais no século XIX, surgiu a arregimentação desmoralizante que ainda hoje caracteriza a rotina das fábricas.

O homem que não conseguiu ajustar-se deve enfrentar a desaprovação da sociedade e a ruína econômica — a menos que abandone tudo, passando a ser um dissidente para o qual o tempo deixa de ser importante. Refeições feitas às pressas, a disputa de todas as manhãs e de todas as tardes por um lugar nos trens e nos ônibus, a tensão de trabalhar obedecendo horários, tudo isso contribui, pelos distúrbios digestivos e nervosos que provoca, para arruinar a saúde e encurtar a vida dos homens.

Nem se poderia afirmar que a imposição da regularidade de horários tenha contribuído a longo prazo para o aumento da eficiência. Na verdade, a qualidade do produto parece ter até diminuído, pois o empregador que vê o tempo como uma mercadoria pela qual tem de pagar obriga o operário a trabalhar numa velocidade tal que a produção forçosamente será de qualidade inferior. O critério passa a ser de quantidade e não de qualidade e já não há mais o prazer do trabalho pelo trabalho. O operário transforma-se, por sua vez, num especialista em “olhar o relógio”, preocupado apenas em saber quando poderá escapar para gozar as suas escassas e monótonas formas de lazer que a sociedade industrial lhe proporciona; onde ele, para “matar o tempo”, programará tantas atividades mecânicas com tempo marcado, como ir ao cinema, ouvir rádio e ler jornais, quanto permitir o seu salário e o seu cansaço. Só quando se dispõe a viver em harmonia com sua fé ou com sua inteligência é que o homem sem dinheiro consegue deixar de ser um escravo do relógio.

(George Woodcock, A rejeição da política, in _Os grandes escritos anarquistas_, Porto Alegre, L & PM, 1981, p. 120 e segs.)

Mais-valia em Marx.

A mais-valia é o conceito central de toda a teoria econômica de Karl Marx. Ele a desenvolveu para explicar a origem do lucro no sistema capitalista de uma forma que revelasse a exploração inerente a esse sistema.

Em termos simples, a mais-valia é o valor novo criado pelo trabalhador durante a sua jornada de trabalho que excede o valor de sua própria força de trabalho e que é apropriado gratuitamente pelo capitalista.

1. Os Fundamentos: A Teoria do Valor-Trabalho

Para entender a mais-valia, é preciso primeiro entender a premissa na qual Marx se baseia, herdada dos economistas clássicos (como Adam Smith e David Ricardo):

O Valor de uma Mercadoria: O valor de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho socialmente necessário para produzi-la. Quanto mais tempo e esforço forem necessários, mais valor a mercadoria terá.

A Força de Trabalho como Mercadoria: No capitalismo, o trabalhador não vende o seu trabalho, mas sim a sua força de trabalho (sua capacidade de trabalhar por um determinado tempo – um dia, uma hora). Essa força de trabalho também é uma mercadoria, e seu valor é determinado pelo tempo de trabalho necessário para reproduzi-la (ou seja, o custo dos meios de subsistência – comida, moradia, vestuário – que mantêm o trabalhador e sua família vivos).

2. A "Mágica" da Exploração: Como a Mais-Valia é Gerada

O processo de geração da mais-valia ocorre porque o valor que o trabalhador cria é maior do que o valor que ele recebe.

Exemplo:

1.  O Valor da Força de Trabalho:

   Suponha que um trabalhador precise de R$ 80,00 por dia para se sustentar (comida, aluguel, etc.). Esse é o valor de sua força de trabalho.

    O capitalista paga esse valor ao trabalhador na forma de salário. Digamos que a jornada de trabalho seja de 8 horas.

2. O Tempo de Trabalho Necessário:

    Se em 4 horas de trabalho o trabalhador consegue produzir um valor equivalente ao seu salário (R$ 80,00), essas 4 horas são o "trabalho necessário". É o tempo que ele trabalha para "pagar o seu próprio custo".

3. O Tempo de Trabalho Excedente e a Mais-Valia:

No entanto, o capitalista contrata o trabalhador por 8 horas, não por 4.

     Nas 4 horas restantes (o "trabalho excedente"), o trabalhador continua a produzir valor. Digamos que ele produza mais R$ 80,00 de valor.

    Esse valor excedente de R$ 80,00 criado pelo trabalhador, pelo qual ele não é remunerado, é a MAIS-VALIA.

Resumo do Exemplo:

> Jornada de trabalho: 8 horas.

> Trabalho Necessário (cria o valor do salário): 4 horas = R$ 80,00 (salário pago).

> Trabalho Excedente (cria a mais-valia): 4 horas = R$ 80,00 (lucro do capitalista).

> O capitalista apropria-se dos R$ 80,00 de mais-valia sem pagar nada por eles.

É esse mecanismo que Marx identifica como a base da exploração capitalista. A relação parece justa na superfície (um dia de trabalho por um dia de salário), mas esconde o fato de que o trabalhador está trabalhando de graça por uma parte do seu tempo.

3. As Duas Formas de Aumentar a Mais-Valia

Marx descreve duas maneiras principais pelas quais os capitalistas podem aumentar a quantidade de mais-valia extraída:

a) Mais-Valia Absoluta

Como funciona: Aumentando a jornada de trabalho sem aumentar o salário.

Exemplo: No nosso exemplo, se a jornada for estendida de 8 para 10 horas, o trabalho necessário continua sendo 4 horas, mas o trabalho excedente salta para 6 horas. A mais-valia aumenta de R$ 80,00 para R$ 120,00.

Limite: Há um limite físico e social (fadiga, revoltas, legislação trabalhista).

b) Mais-Valia Relativa

Como funciona: Reduzindo o tempo de trabalho necessário.

Isso é alcançado pelo aumento da produtividade (máquinas, linhas de montagem, organização científica do trabalho). Se a produtividade aumenta, o trabalhador produz o valor equivalente ao seu salário em menos tempo.

Exemplo: Com novas máquinas, o trabalhador pode produzir os R$ 80,00 do seu salário em apenas 2 horas em vez de 4. Agora, em uma jornada de 8 horas, o trabalho excedente (e a mais-valia) salta para 6 horas (R$ 120,00) sem precisar aumentar a jornada.

É a forma predominante no capitalismo maduro.

4. A Destinação da Mais-Valia: Lucro, Juro e Renda

A mais-valia não é sinônimo de "lucro" no sentido contábil imediato, mas é a fonte última de toda a renda não trabalhista na sociedade capitalista. Ela se divide em:

Lucro Industrial: A parte que fica com o capitalista que é dono da fábrica.

Juro: A parte paga aos bancos pelos empréstimos.

Renda da Terra: A parte paga aos proprietários de terras (aluguel).

5. Conclusão: A Importância do Conceito

A teoria da mais-valia é revolucionária porque:

1.  Desnaturaliza o Lucro: Mostra que o lucro não é uma característica natural do mercado ou uma recompensa pela "espera" ou "risco" do capitalista, mas o resultado de uma relação social de exploração.

2.  Revela a Base da Luta de Classes: O interesse do capitalista é aumentar a mais-valia (baixando salários, aumentando a jornada ou a produtividade). O interesse do trabalhador é reduzir a exploração (aumentando salários, reduzindo a jornada). Esse conflito de interesses é inerente e insolúvel dentro do sistema.

3.  É a Chave para a Crítica do Capitalismo: Ao identificar a exploração na própria origem da acumulação de capital, Marx fornece a base teórica para argumentar que o capitalismo é um sistema intrinsecamente injusto e que contém as sementes de sua própria crise.

Em resumo, a mais-valia é a quantificação da exploração do trabalho pelo capital. É a demonstração de que a riqueza da classe capitalista é produzida, em última instância, pela classe trabalhadora.

Sumário de Leitura Recomendada

Uma primeira introdução: Marx, "Salário, Preço e Lucro" (Cap. XI), Obra curta e de linguagem mais direta.

O estudo sistemático e completo: Marx, "O Capital", Livro I (Cap. 4-9): A fonte primária e definitiva.

Uma síntese brilhante: Engels, "Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico": Explica o lugar da mais-valia no marxismo.

Um guia de leitura moderno: David Harvey, "A Companion to Marx's Capital": Ajuda a decifrar a complexidade de O Capital.



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